Maconha medicinal: pela primeira vez, STJ libera o plantio para três pacientes, abrindo precedentes
Brasileiros estão conseguindo junto ao STJ o direito de cultivar maconha Foto: arquivo pessoal / Agência O Globo
O uso de um remédio feito a partir da maconha, de acesso fácil nos Estados Unidos, virou um problema quando um jovem brasileiro retornou ao Brasil de viagem. Aqui, ele optou por cultivar a planta para extrair o óleo usado no tratamento de insônia e ansiedade, pois a importação do produto, mesmo legal, era muito cara. Sua tia, com um câncer, também passou a usar o óleo extraído da planta: (Continua após a publicidade).
— Desde a Califórnia, já vinha sentindo diferença na minha saúde. Da minha tia, o que ela mais comenta é conseguir descansar a mente e o corpo — disse o jovem, que pediu anonimato.
Para evitar problemas, pediu autorização, mas a juíza que analisou o caso não só negou o pedido, como também determinou que ele fosse investigado e intimado pela Polícia Federal. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), com sede em São Paulo, reverteu a medida, autorizando o plantio para fins medicinais, e, em 14 de junho, ele conseguiu mais uma decisão favorável a ele e à tia, desta vez da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o segundo tribunal mais importante do país.
Nos EUA, ele aprendeu técnicas de plantio e preparo. Chegou a trabalhar numa fazenda que cultivava a planta na Califórnia. Ao GLOBO, disse esperar que ninguém mais tenha que enfrentar essa mesma dor de cabeça.
— Graças a Deus, na semana passada, a gente conseguiu ficar em paz nesse sentido jurídico — comemora.
No mesmo julgamento, a Sexta Turma do STJ também reverteu uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que havia negado ao engenheiro da computação Guilherme Martins Panayotou, de 27 anos, de Sorocaba (SP), o cultivo da maconha para fins medicinais. Desde os 12 anos ele sofre de insônia, ansiedade, estresse pós-traumático, transtorno misto ansioso e depressivo, transtorno depressivo recorrente e fobias sociais, e faz tratamento psiquiátrico. Nada funcionava até que sua mãe sugeriu o uso medicinal da maconha.
Antes do tratamento, perdeu emprego, repetiu de ano na escola e terminou um relacionamento em razão das doenças. Hoje, trabalha e está num relação que diz ser “bastante saudável”. Inicialmente ele importou o produto, mas o custo era alto. Depois procurou o mercado negro, mas tinha dúvidas da procedência do óleo. Passou a cultivar, mas sempre com medo de uma denúncia ou da visita da polícia, o que não chegou a ocorrer:
— Eu cultivava na casa da minha mãe, onde morava. Imagina chegar a polícia e minha mãe ir para a delegacia. Então eu dormia e acordava todo dia com medo.
O uso medicinal da maconha, com importação, é legalizado, porém caro, e não há regulamentação do cultivo. Nas instâncias inferiores, há decisões tanto para autorizar o plantio, como para proibir o plantio — O GLOBO procurou a Justiça dos três maiores estados do país, mas não obteve estatísticas. E agora as decisões tomadas dia 14 valem apenas para essas três pessoas, mas também servem de precedente para outras cortes e juízes do país.
O STJ liberou, nestes casos, o cultivo com algumas regras, como um limite da quantidade de plantas. Guilherme contou que o cálculo foi feito por ele com a ajuda de um consultor contratado e é suficiente para seu tratamento.
— Quando se trata do uso medicinal, não posso dizer que esse limite é para todo mundo. Por isso há a necessidade de uma orientação médica. Não pode qualquer um a seu bel prazer sair plantando para uso próprio medicinal — disse o ministro Sebastião Reis Júnior, relator de uma das ações, ao GLOBO.
No julgamento, o ministro Rogério Schietti Cruz, relator da decisão que beneficiou a tia e o sobrinho, criticou o Ministério da Saúde e a Anvisa, dizendo que um órgão joga para o outro a responsabilidade da regulamentação do cultivo. Procurada pelo GLOBO, a Anvisa informou que já regulamenta a venda de produtos derivados da maconha no varejo e a importação, mas “não regula o plantio”. O Ministério da Saúde disse que a inclusão de novos tratamentos é avaliada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), que “atua sempre que demandada, considerando aspectos como eficácia, acurácia, efetividade e segurança”.
— Do ponto de vista da estrita leitura da lei, quem cultiva estaria incurso nas penas de tráfico. Só que no caso julgado a finalidade é proteger a saúde das pessoas que cultivam. Não há a intenção de traficar — afirmou Schietti.
Entrevista: Rogério Schietti Cruz e Sebastião Reis Júnior
Os ministros do STJ Rogério Schietti Cruz e Sebastião Reis Júnior, relatores dos processos sobre cannabis julgados na semana passada, esperam que haja mais decisões liberando o cultivo para fins medicinais e defendem um debate na política de enfrentamento às drogas.
Qual o impacto da decisão no Judiciário brasileiro?
Rogério Schietti Cruz: É difícil prever, mas a visibilidade que se deu, quando é uma decisão oriunda do STJ, é bem maior do que as centenas ou talvez milhares de decisões que já foram proferidas no mesmo sentido. Muitos juízes já autorizam, mas quando essa decisão assume o caráter nacional, acho que isso tem uma dimensão muito maior e serve como paradigma para que outros juízes que talvez se sentissem de alguma forma inibidos, receosos de decidirem nessa linha possam agora ter esse amparo jurisprudencial.
Sebastião Reis Júnior: Eu acho que é muito cedo ainda, mas espero que sirva como uma sinalização de que mais decisões como essa sejam proferidas. Acho que existe um momento favorável, até tendo em vista a situação difícil na saúde, nos planos, dificuldade de acesso a atendimento médico. Tudo isso abre espaço realmente para esses meios alternativos de tratamento.
Não há regulamentação atualmente sobre esse tema. A decisão pode fazer com que o Ministério da Saúde e a Anvisa se mexam?
Rogério Schietti Cruz: A gente tem sempre a esperança de que sim, de que haja mais pressão por parte da própria sociedade civil. A Anvisa diz que a competência é do Ministério da Saúde, que por sua vez também diz ser incompetente para essa questão e devolveu para a Anvisa. Nesse jogo de empurra-empurra ninguém ganha. Espero que com a repercussão que ela causou, os órgãos, sejam quais forem, assumam a responsabilidade de regulamentar. Não é possível que cada pessoa que dependa do tratamento, de terapia, seja obrigada a recorrer ao Poder Judiciário, com a incerteza que isso acarreta.
Sebastião Reis Júnior: Espero que sim. Existe uma realidade que são milhares de pessoas precisando de medicação e não têm acesso. Existe um caminho, e o Ministério da Saúde e a Anvisa não se posicionam quanto a isso. Infelizmente é um problema atual no Brasil.
Será preciso uniformizar os entendimentos da Quinta Turma do STJ, que ainda não liberou o plantio, e da Sexta, que deu o salvo conduto?
Rogério Schietti Cruz: Pretendo, assim que tiver outro processo similar, afetar o julgamento para a [Terceira] Seção [que reúne as duas turmas], porque é importante que, quando existe divergência entre as turmas, nós a eliminemos com o julgamento conjunto pela Seção.
Sebastião Reis Júnior: Provavelmente. Andamos conversando com o pessoal da Quinta Turma, e talvez eles reexaminem a questão para saber que caminho seguir. Se permanecer a divergência, certamente a questão será levada para a Seção dar uma palavra final.
Como vê a política de drogas atualmente no Brasil?
Rogério Schietti Cruz: É muito desanimador ver que o Brasil hoje tem uma das políticas de drogas das mais atrasadas do mundo, uma política criminalizante de qualquer uso de drogas, independentemente da quantidade, da natureza da droga. É preciso que a sociedade, o Poder Legislativo que a representa de fato se abrisse ao diálogo e se dispusesse a rever a legislação. Alguns países descriminalizaram. Em outros se regulamenta permitindo uma quantidade. Esse é um debate que precisa acontecer no Brasil sem esse tom religioso, moralista, preconceituoso que, infelizmente, impede que sequer o assunto seja debatido na esfera política ou na própria sociedade.
Sebastião Reis Júnior: Essa questão das drogas precisa ser discutida. Não dá para continuar com a cabeça enterrada na areia e fingir que não existe, e adotar uma postura no sentido de que é proibido. Proibir a gente já sabe que não é a solução para isso. Temos que caminhar, ver o melhor caminho. Espero que essa decisão sirva como um empurrão, mais um passo.
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