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O novo normal do sexo

A vida cada vez mais digital, a queda de tabus e a pandemia mexeram com a nossa sexualidade, abrindo questões já não mais restritas às quatro paredes

Sexo, pra mim, é uma forma de interação social. Algumas pessoas fazem call pra jogar online, outras saem para jantar e algumas transam. É só a forma de prazer que elas escolheram para aquele momento”, define, com naturalidade, Danielle*, de 18 anos.


A garota, que nunca viu o Brasil ser campeão de uma Copa do Mundo, descobriu o que era sexo na internet e deu seu primeiro beijo aos 14 anos numa garota. “Confesso que não sabia se gostava de meninos, meninas, dos dois ou de nenhum, mas sabia que, se eu sentisse vontade de fazer algo, não seria o gênero que iria me impedir”, explica.


Do beijo à primeira transa foi um pulo: aos 15, perdeu a virgindade com um namorado. Mas, depois do primeiro parceiro, mesmo com transas casuais mais acessíveis por meio de aplicativos, a garota não fez sexo com mais ninguém. O que está longe de ser um problema: “Além da pandemia, que dificulta conhecer gente, estou no cursinho, então não tenho tempo pra pensar nisso”. (Continua após a publicidade).

Danielle é um típico retrato da Geração Z, os nascidos entre o final dos anos 1990 e o começo dos 2000. Eles veem o sexo como algo natural, mas têm uma frequência sexual considerada mais baixa. Um estudo conduzido pelo Instituto Karolinska, na Suécia, e pela Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, revela que um em cada três homens com idade entre 18 e 24 anos não teve nenhuma relação sexual nos últimos 12 meses. A “inatividade sexual” nessa faixa aumentou de 19 para 31% de 2000 a 2018.


Enquanto os jovens parecem pensar cada vez menos naquilo, cai por terra o mito de que idosos se aposentavam dessas atividades. Uma pesquisa da Universidade de Michigan mostra que, entre americanos de 65 a 80 anos, quase metade dos que tinham parceiro era sexualmente ativa.


“Sexo é vida. Tenho doenças, sei que meu desempenho caiu, mas, adaptando, dá pra manter o prazer”, diz Carlos*, de 70 anos. Usando um aplicativo de relacionamento, ele encontrou um novo amor há dois anos. “Conheci minha eterna namorada, e a gente se entende na cama”. (Continua após a publicidade).

Mais tecnologias, menos tabus e, agora, uma pandemia no meio do caminho. Afinal, o que é o novo normal em matéria de sexo? Para refletir sobre onde estamos e aonde vamos, vale a pena olhar pelo retrovisor. Quando nossos pais ou avós eram jovens e se descobriam, o único acesso ao universo sexual eram conversas entre amigos e revistas de nudez. Se aprendia o que era sexo na prática.


Hoje, adolescentes têm à disposição vídeos com cenas explícitas, e apps de paquera encurtaram as coisas até as vias de fato. Mas, se nunca foi tão fácil transar, por que os levantamentos indicam que os jovens estão fazendo menos?


“Muitas outras possibilidades de satisfação estão sendo oferecidas agora. Com múltiplas formas de se comunicar, se entreter e se envolver, o sexo presencial é só mais uma opção”, analisa a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).


Em seu mais recente livro, Sexo no Cotidiano (Editora Contexto), ela aponta que a sexualidade por meios virtuais já está incorporada às novas gerações e vem alargando inclusive o conceito de sexo. “Nunca se acessou tanto site e se fez tanto encontro sexual online. Então não dá pra dizer que os jovens de hoje não se interessam ou fazem menos sexo. Sexo vai muito além do que é tradicionalmente definido”, pondera.


Sexualidade ao longo da vida


Esse é um processo natural que começa ainda na infância

  • Até os 2 anos: na fase de amamentação, a zona erógena é a boca, por isso o bebê leva tudo pra lá. Depois ele começa a apalpar e descobrir seus genitais. E vai entendendo que o carinho recebido também é fonte de prazer.

  • Entre 2 e 6 anos: de 2 a 3 anos, a zona erógena é o ânus, e o bebê sente independência e satisfação ao conseguir controlar as fezes, por exemplo. De 4 a 6 anos, a criança passa a entender as diferenças entre os sexos.

  • Entre 6 e 12 anos: o maior prazer vem da socialização. De 6 a 8 anos, já se tem mais autonomia e surge a curiosidade sobre os genitais de outras crianças. De 9 a 12, pode começar o interesse por conteúdos sexuais.

  • Adolescência: experiências sexuais começam a ser praticadas ou cogitadas. Masturbação, pesquisa por materiais que excitam (vídeos e fotos) e conversas sobre sexo com os colegas se tornam bem comuns.

  • Fase adulta: vive-se a plena maturidade sexual, que pode ser encarada de forma distinta de pessoa para pessoa, influenciada por dinâmicas sociais e psicológicas. Não há prazo de idade para vivenciar a sexualidade.


Fora da caixa


Os questionamentos e tendências trazidos à tona por Carmita têm a ver com uma ruptura diante de algo bem comum em nossa espécie: a necessidade de enquadrar as coisas (incluindo o sexo) em caixinhas e estabelecer regras universais. Uma série de pesquisas mundo afora tentou cravar a frequência ideal de relações sexuais, quase sempre dando a entender que quanto mais se faz, mais feliz você é. Mas a realidade não é bem essa.


“A satisfação sexual está bem mais relacionada ao estado emocional do indivíduo do que ao número de vezes que ele faz sexo. Muitas pessoas têm bastante prática sexual, sentem desejo, ficam excitadas, mas não estão satisfeitas porque não conseguem sentir o prazer que buscam”, afirma a ginecologista e sexóloga Andrea Rufino, professora da Universidade Estadual do Piauí.


E talvez tenhamos muito o que aprender com os mais novos nesse sentido. Com estudos, planos de carreira e redes sociais para administrar, os jovens medem cada vez menos o sucesso na cama em termos quantitativos. Antes, as proibições e restrições tornavam uma alta frequência sexual um objetivo de vida. Hoje, com mais liberdade, conexão e acesso a praticamente tudo, isso não faz tanto sentido.


“Sexo é só sexo, e vai ter o significado que a gente atrelar a isso. Não acho que seja um grande pilar de um relacionamento ou de qualquer outra coisa”, interpreta Rebecca*, de 20 anos. A jovem já namorou, tem perfil em apps de relacionamento, se masturba com frequência, mas ainda é virgem. E tá tudo bem! Deixar de transar não é sinônimo de não ter desejo. Às vezes, as pessoas só estão mais exigentes na hora de escolher o parceiro ou têm outras prioridades na vida.


Isolamento permissivo


Nem a vida sob os lençóis escapou da pandemia da Covid-19. E, para muitos brasileiros, o distanciamento social imposto pelo coronavírus deixou a vida sexual de pernas para o ar. De acordo com a professora da USP, quando se imaginava que a situação fosse durar pouco tempo, rolou um furor entre os casais que moravam juntos.


“Houve maior frequência sexual por terem mais tempo, proximidade e disposição”, nota. Porém, conforme a crise foi avançando, o medo e a deprê bateram. Com receio de adoecer ou perder alguém e insegurança diante da instabilidade econômica, não havia mais clima. “E, aí, a frequência caiu”, pontua Carmita.


Problemas e dilemas sexuais neste período são uma realidade global. Uma revisão de estudos em cima de dados de cidadãos de EUA, China, Turquia, Itália e Reino Unido revela uma piora generalizada na vida sexual durante a Covid-19. Depressão, desilusão e saudade foram os sentimentos ligados ao fenômeno.


Como se não bastassem tantos percalços, na rotina de home office teve gente que viu a autoestima ir para o brejo. E até a pressão por transar jogou contra. “Tem homem que acha que é obrigado a ter vontade de fazer sexo todos os dias, o que só acaba aumentando a ansiedade”, diz o urologista João Brunhara, consultor científico da Omens, plataforma de cuidados com a saúde sexual masculina.


Se estava difícil para os casados, imagine para os solteiros. Como travar relacionamentos de carne e osso? Foi aí que o sexo virtual decolou de vez. Teve de tudo: de encontros online a concursos de nudes, passando por orgias pela internet. Pensando em minimizar os contatos reais e a circulação do coronavírus, a prefeitura de Nova York chegou a fazer da masturbação e do sexo virtual uma recomendação de saúde pública. “Você é o seu mais seguro parceiro sexual” era o slogan.


Se o isolamento trouxe alguma vantagem, provavelmente foi o fato de as pessoas se permitirem mais. Pesquisadores do Instituto Kinsey, ligado à Universidade de Indiana, mapearam as mudanças no comportamento sexual durante essa fase e perceberam que os cidadãos estão bem mais abertos a descobertas e experiências, compartilhando inclusive as “novidades” pela rede. “Está claro que a vida sexual de muitas pessoas está passando por uma espécie de revolução, na qual elas estão expandindo seus repertórios sexuais”, escreveram os autores na conclusão da análise.


Muita exposição, pouca educação


“Só fui saber que a mulher também tem prazer no sexo ano passado”, diz Jonas*, de 17 anos. “Um cara falou que a mulher faz xixi e sexo pelo mesmo buraco e várias amigas que já menstruavam ficaram em dúvida”, conta Danielle*, de 18 anos. Pode parecer absurdo, mas essas falas são comuns entre jovens.


Apesar do acesso à informação, a falta de educação sexual prejudica muito o entendimento e a vivência da sexualidade — além da prevenção de ISTs e gravidez não planejada. Mesmo assim, uma pesquisa Datafolha de 2019 apontou que 44% dos brasileiros são contra abordar o assunto nas escolas. Contrassenso, não?


Os ingredientes da nova sexualidade


Rotina mais digital e quebra de tabus fazem parte das mudanças

  • Redes sociais: as relações virtuais influenciam na construção da identidade dos jovens, além das vivências da sexualidade. Flertes e relacionamentos começam a partir de postagens e interações digitais.

  • Gênero e orientação sexual: são dois pilares do autoconhecimento, percebidos por cada um individualmente e uma das chaves para ser feliz do ponto de vista afetivo e sexual. Mas ainda há bastante preconceito a enfrentar.

  • Consumo de pornografia: mais deseduca que educa sexualmente. Porém, como é unanimidade entre os jovens, é importante que eles saibam que aqueles corpos e performances são mais ficção que realidade.

  • Isolamento: propulsor do aumento da prática do sexo virtual, muito intensificada pela pandemia. Sextings, nudes, joguinhos sexuais online e apps de relacionamento integram esse movimento sem fronteiras.

  • Cuidados com o corpo: com um sexo cada vez mais livre e aberto a experiências, é crucial manter a saúde e a higiene em dia, fazendo exames periodicamente. É a fórmula para ter doenças de menos e prazer de mais.


Experiências virtuais


Realmente, com a pandemia, nosso estilo de vida nunca foi tão digital. Trabalhar, exercitar-se, fazer compras… Quase tudo envolve agora relações híbridas, o presencial e o online. E com o sexo essa tendência também deve ter chegado para ficar.


“Já surgiu o termo ‘sexo híbrido’. As pessoas podem estar entre quatro paredes num dia e, no outro, fazerem sexting [troca de conteúdos eróticos pelo celular]. Não acho que a gente vá perder esse comportamento”, avalia a psicóloga Michelle Sampaio, da Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual. E até os mais maduros estão descobrindo esse novo normal.


Eterno desejo


Fato para anotar e nunca esquecer: por si só, o processo biológico de envelhecimento não reduz o desejo ou a necessidade de sexo. “Há uma crença muito castradora de que o sexo é algo performático, penetrativo, então as pessoas acham que é nato. Aí envelheceu, parou de fazer. Mas isso não existe”, esclarece a geriatra Glenda Moreira, do Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí. “Fisiologicamente, o desejo continua. Se o idoso parou de transar, foi por algum motivo, e ele pode ser contornado”, completa.


Assim como em qualquer idade, o sexo após os 60 anos está associado a uma dose generosa de bem-estar. “É fato que o envelhecimento é acompanhado de alterações funcionais, mas nada que não possa ser minimizado para que ocorra uma vida sexual prazerosa. Até porque existem diversas formas de chegar ao orgasmo”, afirma o médico Carlos Uehara, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).


Para Luís Baron, vice-presidente da ONG EternamenteSou, que trabalha em prol de um envelhecimento ativo, digno e acolhedor para as minorias LGBT60+, o reconhecimento da velhice vem de fora para dentro. Ele acredita que a marginalização contra esse público ocorre em diversos sentidos, inclusive o sexual, e vem da crença de que os idosos deixam de ser naturalmente produtivos e reprodutivos para a sociedade. “Mas, se você tem desejo aos 50, vai continuar tendo aos 60. A maneira de resolver as questões sexuais muda, mas continuamos sendo pessoas que têm tesão”, diz.


Com o avanço da medicina e dos cuidados com a saúde física e mental, não há mais previsão para alguém declarar sua aposentadoria sexual. E a velhice pode ser encarada inclusive como uma oportunidade de encontrar novas formas de prazer. “Se você acha que o gozo só vem com uma ereção, vai ser um idoso muito infeliz”, provoca Baron.


É completamente normal uma mulher de 80 anos que sofre com artrose e ressecamento vaginal não querer se submeter a uma penetração, mas isso não significa parar de viver a sexualidade: práticas não genitais como carícias, massagens, abraços e beijos, realizadas de forma íntima pelo casal, já podem garantir satisfação e levar ao orgasmo. Afinal, não há limite de idade para a redescoberta do prazer.


Depois de pedir o divórcio por causa de traições, Isabel Dias ouviu do marido com quem estava casada havia mais de 30 anos que já estava velha demais, que ninguém nunca mais ia se interessar por ela porque seu tempo já havia passado. Ela só tinha 55 anos na época. Aquilo foi o estalo, a epifania necessária para ela se permitir. Resultado: 32: Um Homem para Cada Ano Que Passei com Você (Editora Livros De Safra), um livro contando toda a história de seus novos relacionamentos e experiências sexuais com homens que conheceu pela internet.


Antes disso, Isabel nunca tinha ouvido um elogio na hora agá. “Uma vez eu estava num motel, de quatro, e o cara olhou pro espelho e disse ‘Olha como você é linda, olha que mulher você é’, e eu fiquei surpresa. Eu nunca tinha me enxergado naquela posição. Toda essa experiência me fez descobrir algo que eu tinha escondido dentro de mim”, conta a autora, hoje com 65 anos.


O que precisa ficar claro para todo mundo é que a sexualidade é algo presente na vida de qualquer pessoa que quer vivê-la. Jovem ou velha. De forma presencial ou pela internet. E Isabel aprendeu isso na prática: “Independentemente da idade e de termos uma série de imperfeições corporais que a sociedade cobra e aponta, o prazer de cada um é só seu. Não somos metade de uma laranja, somos uma laranja inteira. E não existe prazo de validade para o prazer.”


Receitas para uma sexualidade feliz


É possível tornar as experiências mais plenas e prazerosas

  • Autoconhecimento: sentir-se bem com a identidade sexual e entender o próprio prazer são os primeiros passos para ter satisfação. Desbravar o corpo e perceber o que curte resultam em carícias mais gostosas.

  • Mente sã, corpo são: um estado emocional equilibrado garante que o corpo esteja apto a responder aos estímulos — e vice–versa. Doenças como ansiedade, depressão, pressão alta e diabetes prejudicam o desempenho.

  • Respeito às diferenças: quanto mais bem resolvida a pessoa está com a própria sexualidade, mais naturalmente ela respeita a diversidade do outro. Se algo incomoda na sexualidade alheia, está na hora de refletir sobre si.

  • Sexo protegido: o medo de gravidez indesejada e de ISTs prejudica a excitação e deixa o orgasmo mais distante. Acredite: usar preservativo e pensar só no prazer (seu e o do outro) rende momentos mais felizes.

  • Bons relacionamentos: comunicação, confiança e intimidade são fatores fundamentais para um casal viver plenamente o prazer. Relações conflituosas ou abusivas cortam o clima e acabam em traumas.


Outra epidemia à solta


Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são contabilizados todos os dias mais de 1 milhão de casos de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) pelo planeta.


Aqui, de acordo com o Ministério da Saúde, 1 milhão de brasileiros foram diagnosticados com sífilis, clamídia, HPV e afins em 2019, e quase 60% da população sexualmente ativa não usou preservativo em nenhuma relação. Com a Covid-19 e a redução das ações de prevenção de ISTs, especialistas cobram cuidados (nossos e do governo) para escaparmos dessa outra epidemia.


Fonte: Veja Saúde


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